(Continuação das reflexões sobre intolerâncias)
Esse fragmento de um
texto da antiguidade que apresento abaixo mostra um entendimento universalista
do arquétipo da Grande Mãe, divindade reverenciada desde os primórdios da
civilização (pra lá de 7.000 anos antes de cristo). Desde aqueles tempos, o culto
à Deusa e ao feminino foi sendo suprimido pela consciência patriarcal,
desenvolvendo os modos de pensamento e de convivência que a sociedade ocidental
sustenta até os nossos tempos. O feminino arquetípico, hoje representado como
símbolo na Virgem Maria, perdeu muitas de suas facetas, podendo-se mostrar
apenas com o que interessa ao patriarcado: a subserviência, a devoção, a
misericórdia, a pureza, a virgindade...
Pois que essas faces
também são faces desse arquétipo, mas como na natureza, onde tudo é movimento contínuo,
a Deusa também se transmuta na roda da existência, sendo a rainha da vida e da
morte, da luz e da sombra, ela trás em sua força todas as potências e devires naturais
de cada um dos filhos da Terra. Ao renegar esse arquétipo, o ser humano passou
a priorizar o desenvolvimento da consciência e da razão, deixando na escuridão
todos os tormentos de sua alma. Deixou de olhar para dentro de si para
acreditar no dogma da fé imposta e institucionalizada. Passou a chamar de
demônio e de mal seus impulsos primais, como se pudesse simplesmente descola-los
do próprio corpo.
A pressão que se faz
para reprimir de dentro o que nos ensinam a rejeitar se vê projetada nas
relações de poder, nos corpos enrijecidos, nas ideias inflexíveis, nos medos,
nos muitos medos, nos tantos medos que os vemos na arquitetura das cidades, nos
olhares desconfiados, na forma como educamos as crianças... E essa sociedade
patriarcal, sem sua mãe, nem sabe mais o que é ser humano - fica se questionando:
“mas isso é humano?”.
Se hoje o universalismo
é um movimento importante na transformação de muitos dos paradigmas da
sociedade ocidental, vejamos, através desse texto, que esse não é um conceito
novo, mas algo que precisa ser resgatado através de existências que também
acolham seus opostos, que permitam que a vida se desenvolva em sua integridade,
na aceitação de prazer e dor, luz e sombra, vida e morte. Reconectar-se com sua
própria natureza, e à natureza que o circunda, é o desafio que o homem deve se
propor nesse momento de crise. O ser humano que busca equilibrar suas forças
psíquicas, aceitando os fatos naturais da existência, torna-se mais capaz de
aceitar a própria diversidade da vida. E estará mais receptivo ao outro, mesmo
através de suas diferenças. Perceber que as intolerâncias são fatos
consequentes do tipo de cultura que se desenvolve no ocidente é um primeiro
passo para buscarmos uma revolução em nosso pensar que permita convivermos com
mais harmonia.
“Sou
aquela que é a mãe natural de todas as coisas, senhora e soberana de todos os
elementos, a progênie original dos mundos, principal dos poderes divinos, rainha
de todos os que estão no inferno, comandante daqueles que habitam o céu,
manifestada unicamente sob a forma de todos os deuses e deusas. À minha vontade
disponho os planetas do céu, os saudáveis ventos marítimos e os silêncios
deploráveis do inferno; meu nome, minha divindade é adorada por todo o mundo,
de diversas maneiras, em costumes variados e por muitos nomes.
Pois
os frígios que são os primeiros de todos os homens chamam-me Mãe dos deuses do
Pessinus; os atenienses, autóctones, de Minerva Cecrópia; os cipriotas,
cingidos pelo mar, de Vênus Pafiana; os cretenses sagitíferos, de Diana
Dictina; os sicilianos, que falam três línguas, de Prosérpina Estígia; os
nativos de Elêusis, de Ceres Acteana; para alguns Juno, para outros Belona e
outros Hécate, para outros ainda Ramnúsia. Já ambos os tipos de etíopes que
habitam o Oriente e são iluminados pelos raios do sol da manhã e os egípcios,
excelentes em todas as espécies de doutrinas antigas e acostumados a adorar-me
em suas próprias cerimônias, chamam-me pelo meu verdadeiro nome, Rainha Ísis.”
Palavras da Deusa Ísis
dirigidas a seu iniciado Apuleio (150 D.C.), em citação retirada de “As
Máscaras de Deus – Mitologia Ocidental”, de Joseph Campbell